Na Central de Inquéritos e Custódia da Comarca da Ilha de São Luís desde as 8h, Weslene Araújo, enfermeira de 27 anos, aguarda notícias do marido. Sentada na calçada da unidade, sob a sombra fraca de uma árvore, ela permanece exposta ao sol e à chuva — sem saber como será o seu dia.
Moradora do Araçagy, bairro localizado em São José de Ribamar, na Região Metropolitana de São Luís, Weslene teve a rotina virada de ponta cabeça na noite do dia 24 de abril. Após a detenção do marido, foi orientada ainda na delegacia a procurar informações sobre ele na Central, localizada na Avenida dos ses, bairro Outeiro da Cruz. Ao chegar ao local, foi barrada por agentes penitenciários na guarita que antecede a entrada da unidade. “A gente tem que ficar aqui do lado de fora. A gente não pode nem entrar lá só pra saber, ter alguma informação da pessoa que eles trouxeram. E a gente fica aqui nesse sol, sem proteção alguma.”
A cada hora que a sentada no meio-fio, à beira da movimentada Avenida dos ses, a angústia de Weslene cresce. “Tô bem abalada. É uma coisa que nunca ei. É a primeira vez que tô vindo aqui, então é uma coisa que eu não esperava.”
A única informação recebida pelos agentes, ao chegar, foi que ela deveria aguardar até as 10h. Quando o relógio marcou meio-dia, Weslene continuava no mesmo lugar. Nem mesmo a chuva inesperada desviou sua atenção. A essa altura, ela já sabia que o marido seria representado por um defensor público na audiência de custódia — mas ainda não fazia ideia de quem ele era.
A reportagem do Atual7 esteve na Central de Inquéritos e Custódia nas últimas semanas de abril de 2025 e acompanhou a rotina dos familiares que aguardam do lado de fora da unidade. As cenas de pessoas sentadas na calçada, expostas às intempéries, se repetem diariamente.
A audiência de custódia, conforme a Resolução nº 213/2015 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), é o procedimento pelo qual toda pessoa presa em flagrante deve ser apresentada a um juiz no prazo de até 24 horas, para que se analise a legalidade e a necessidade da prisão. No Maranhão, a Lei Complementar nº 188, de 18 de maio de 2017, institui e regulamenta as audiências de custódia no âmbito do Poder Judiciário estadual.
Desde 2020, as audiências de custódia da Comarca de São Luís aram a ocorrer em um prédio exclusivo: a Central Integrada de Inquéritos e Custódia, que recebe presos em flagrante da capital, além de Paço do Lumiar, São José de Ribamar e Raposa, todos também da Região Metropolitana.
Antes disso, eram realizadas no Fórum Desembargador Sarney Costa, no bairro Calhau. Já em 2022, foi publicada a Portaria Conjunta 08 da SEAP (Secretaria de Estado de istração Penitenciária) e do TJMA (Tribunal de Justiça do Maranhão), regulamentando a realização das audiências de custódia e o atendimento prestado por equipe multidisciplinar.
A portaria conjunta estabelece que a pessoa presa tem direito ao apoio da família e não pode permanecer incomunicável. Além disso, determina que a Central deve dispor de um espaço específico para assegurar esse direito. Segundo o artigo 13 da norma: “A pessoa custodiada, a partir do momento da constrição de sua liberdade, poderá comunicar-se com seu defensor de modo confidencial, sem interferência ou censuras, bem como obter a assistência de sua família, vedada sua incomunicabilidade, reservando-se, na Central de Inquéritos e Custódia da Capital, dependência própria para esta finalidade.”
Uma portaria conjunta é um ato istrativo emitido simultaneamente por dois ou mais órgãos ou autoridades, com o objetivo de estabelecer normas, procedimentos ou diretrizes comuns sobre determinado assunto. No caso da istração pública, ela serve para garantir que diferentes instituições atuem de forma coordenada em temas que envolvem responsabilidades compartilhadas.
No entanto, a reportagem do Atual7 constatou que, na prática, essa determinação não está sendo cumprida. Enquanto o interior da Central conta com instalações modernas para magistrados e demais operadores do Direito, os familiares permanecem do lado de fora, na calçada, sem proteção contra sol ou chuva, sem o a água ou banheiros, e sem informações adequadas sobre seus parentes detidos. Essa situação persiste mesmo dois anos após a publicação da portaria que determina expressamente a existência de “dependência própria” para esse fim.
Em dezembro de 2024, o advogado Thiago Silva Cruz e Cunha ajuizou uma ação popular contra o Estado do Maranhão, em trâmite na Vara de Interesses Difusos e Coletivos da Comarca da Ilha de São Luís, sob o número 0897295-11.2024. A ação busca obrigar o Estado a construir uma sala de espera na Central de Inquéritos e Custódia para os familiares de pessoas presas em flagrante, já que a atual estrutura da unidade não dispõe desse espaço de acolhimento.
De acordo com o artigo 5 da Constituição Federal, qualquer cidadão que esteja em situação regular com a Justiça Eleitoral pode propor uma ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural ou que vá contra a moralidade na istração pública.
Durante os dias de apuração, a reportagem acompanhou diversas famílias que enfrentam as mesmas dificuldades de Weslene. Os relatos revelam um padrão de desamparo e exposição às intempéries, sem qualquer estrutura de acolhimento. Junto dela na calçada, o Atual7 ouviu Lurdes Sousa, dona de casa de 43 anos, moradora do Maiobão, bairro localizado no município de Paço do Lumiar.
Além da angústia por saber que o filho está detido, Lurdes ainda precisou lidar com a falta de infraestrutura do local. “Tá sendo péssimo, eu não consigo comer, hoje mesmo eu tô desde manhã sem tomar café e já tô aqui a aproximadamente 2h nessa humilhação, no sol, e se fosse na chuva a gente estaria na chuva. Eu acho que deveria ter uma sala lá pra dentro, pelo menos pra gente esperar a audiência de custódia. Aqui é arriscado um assalto, um acidente, a gente tá sujeita a tudo”, afirma.
Quem também enfrentou a longa espera na Central foi Alessandra Pereira, autônoma de 45 anos e moradora da Vila Magril, bairro localizado no município de São José de Ribamar. Não é a primeira vez que seu marido é detido, então já sabia melhor o que fazer após a prisão em flagrante. Mesmo assim, foi esperar o cônjuge na unidade. Quem entrou nas instalações do prédio, porém, foi a cunhada dela, após apresentação de um ofício da DPE-MA (Defensoria Pública do Estado do Maranhão).
“Vim aqui hoje porque meu marido estava indo para o serviço e em uma blitz ele foi pego, ele estava com um mandado e eu nem sabia. Ele foi trazido pra cá, não sei se foi ontem ou hoje, e agora eu vim para trazer alguns documentos para o defensor dele, mas não deixaram eu entrar, somente minha cunhada”, relata.
Alessandra conta que precisou deixar sua moto distante, já que não pode estacionar na unidade. “A minha moto eu tive que deixar lá em cima, já perto do Elevado do Café, corre o risco de eu chegar e minha moto não estar mais lá. Tô aqui na porta, tô com sede, não tem nem água pra gente e nem onde comprar aqui perto. Se tivesse chuva a gente ia ficar debaixo da chuva, não tem onde ficar”.
Na opinião da autônoma, é impossível ficar em casa em um momento como esse. “Eu tive que vir pra cá porque se ele for liberado, como é que ele vai voltar pra casa? Ele não tá com o telefone pra chamar um carro, tá sem dinheiro, sem nada. Se eu tivesse a informação de que a audiência dele não vai ser agora, eu iria pra casa e voltava, mas eu não sei”, finaliza.





De acordo com o manual “Audiência de custódia: informações importantes para a pessoa presa e familiares”, criado pelo CNJ, PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes) e pelo antigo DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional, hoje conhecido como Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais), a pessoa presa em flagrante pode pedir, antes da audiência de custódia, a um familiar ou amigo para levar e entregar em mãos documentos para o defensor público ou advogado, como: carteira de identidade, documento que comprove se tem filhos, comprovante de residência, carteira de trabalho, comprovante de matrícula em escola ou curso, receitas médicas e/ou documentos que comprovem doenças ou tratamento de saúde.
Todos esses documentos são importantes para a decisão do juiz sobre o destino do preso em flagrante, porém, esse manual – que fica disponível apenas no interior da Central – não está ao alcance dos familiares dos custodiados, já que eles não conseguem ar da guarita. No caso de Alessandra, só foi possível porque a cunhada conseguiu por meio da Defensoria.
Thiago Cruz, advogado autor da ação popular, fundamentou sua petição inicial alegando que houve uma lesão ao princípio constitucional da moralidade istrativa por parte do Estado. O princípio da moralidade istrativa está previsto no caput do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, que estabelece: “A istração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Esse princípio impõe que os atos da istração pública, além de legais, devem observar padrões éticos de conduta, como honestidade, boa-fé e respeito ao interesse coletivo.
Outro ponto levantado por Cruz foi que houve lesão ao princípio da dignidade da pessoa humana junto ao princípio da pessoalidade das penas – de que a pena não vai ar da pessoa presa para terceiros. “Quando o Estado do Maranhão se omite em criar uma instalação adequada para os familiares terem informações da pessoa presa, ele cria uma angústia psicológica nas pessoas que estão à mercê das intempéries do tempo”, explica.
O princípio da dignidade da pessoa humana está consagrado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Este princípio reconhece o valor intrínseco de cada pessoa e serve como base para a proteção dos direitos fundamentais de todos os cidadãos, inclusive daqueles em situação de vulnerabilidade, como os familiares de pessoas detidas.
A empresária Joyce Santos, 29 anos, moradora da Jordoa, bairro situado em São Luís, também também foi impedida de entrar na Central de Inquéritos e Custódia. Ela chegou à unidade acompanhada da tia. Durante a apuração, a reportagem flagrou o momento exato em que ela foi barrada pelos agentes penitenciários. Joyce não sabe se o seu primo está com um advogado ou defensor público, já que não conseguiu nenhum tipo de informação.
“Não tem uma cadeira, não tem nem sombra. É humilhante. Além da situação em si que a gente tá ando, ainda tem que se deparar com essa situação. Eu sei que o que ele fez, independente, é diferente da nossa situação aqui”, frisa.

Para o advogado Thiago Cruz, em paráfrase de Fiódor Dostoiévski – escritor russo do século XIX, conhecido por explorar os dilemas morais, psicológicos e existenciais da condição humana -, a forma de medir o parâmetro civilizatório de uma sociedade é observar o modo como são tratadas as pessoas presas. “Eu quero que essa ação sirva para trazer pro debate público as ações populares. É que eu acredito nisso, que a ação popular é uma tutela de direito coletivo para trazer pro debate público algumas coisas que estão esquecidas pela sociedade civil”, completa.
Todas as mulheres entrevistadas nesta reportagem decidiram não mostrar seus rostos nas fotos por medo de represálias, mas autorizaram a divulgação de seus nomes e bairro onde residem.
O Atual7 questionou a SEAP e o TJMA sobre a ausência de estrutura para acolhimento dos familiares, mas não houve resposta. Nos autos da ação popular que tramita na Vara de Interesses Difusos e Coletivos, o Estado do Maranhão apresentou contestação alegando que este tipo de ação não seria o meio adequado para obrigar o Estado a construir algo, como uma sala de espera na Central de Inquéritos e Custódia. Por isso, pediu que o processo fosse encerado sem análise do mérito da questão.
Segundo a Procuradoria-Geral do Estado, que assina a manifestação, não há omissão estatal no caso. “Advogados e defensores públicos têm livre o à Central de Inquéritos e, no exercício de suas funções, podem fornecer informações aos familiares de seus assistidos. Além disso, a SAF [Supervisão de Atendimento Familiar] disponibiliza um número de telefone para contato, a fim de prestar informações sobre a situação de custódia dos internos, desde que o solicitante se identifique adequadamente”, diz trecho de resposta da SEAP no processo.
Segundo o Manual de Rotina das Unidades Prisionais, disponível no site da SEAP, o SAF é o setor responsável por preservar e fortalecer os vínculos da pessoa presa com a família e a sociedade. Subordinado à Unidade Gestora de Atendimento e Humanização Penitenciária, o programa deve realizar ações de orientação, apoio social, psicológico e jurídico aos familiares. Além disso, o SAF é o responsável por cuidar do cadastramento de visitantes, planejar projetos que incentivem a participação da família no processo de ressocialização e monitorar as atividades de assistência nas unidades prisionais.
No entanto, conforme observou o Atual7 quando esteve no local, não existe nenhuma placa informativa sobre o SAF na guarita da Central – local mais próximo das instalações internas que os familiares podem chegar. Além disso, todas as familiares entrevistadas nesta reportagem negaram terem recebido algum tipo de informação sobre esse serviço.
VIOLAÇÃO DE DIREITOS HISTÓRICA E SISTÊMICA
Para Luis Antonio Pedrosa, advogado popular e atual vice-presidente do CEDDH-MA (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Maranhão), os familiares de presos têm um conjunto de direitos que precisam ser respeitados. Segundo ele, existem diretrizes que orientam o acolhimento digno aos familiares de pessoas presas, como as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos (Regras de Mandela), que estabelecem instruções também sobre o tratamento dos familiares dessas pessoas.
No âmbito nacional, ele destaca que a Lei de Execução Penal prevê que a obrigação de tratamento digno aos presos se estende aos seus familiares. “A assistência social ao preso deve incluir orientação e amparo à sua família, à do internado e à da vítima, quando necessário. Essa previsão está no artigo 23, inciso VII, da Lei de Execução Penal”.
Pedrosa expõe que, para ele, não é compatível com esses direitos simples mecanismos de atendimento à distância, quando a realidade dessas pessoas impõe a necessidade de longos deslocamentos para saber de informações sobre o preso”, afirma.
O conselheiro aponta que a situação envolvendo a falta de local adequado para os familiares de presos em flagrante, na Central de Inquéritos e Custódia de São Luís, se insere em um contexto mais amplo de violações no sistema carcerário maranhense.
“Desde as revistas vexatórias, que em certa medida continuam a existir mas foram mitigadas por força de decisões judiciais, exigências que limitam e restringem o direito à visitas, espaços inadequados para visitações, tais como quadras abertas, sujeitas aos efeitos do sol escaldante e das chuvas, é possível dizer que a luta por melhores condições de tratamento nos presídios e espaços de custódia é histórica. Os direitos dos presos devem repercutir nos direitos dos familiares. E sem acompanhamento e apoio familiar a socialização do preso é muito mais difícil”, explica.
Pedrosa reforça o conceito de pessoalidade da pena levantado na ação popular: “O familiar não comete crime”, relembra. Ele expõe que, na verdade, seria o contrário, ou seja, o familiar seria um agente para a recuperação social do preso apenado. “Por outro lado, muitas vezes o preso levado à Central de Custódia sequer é apenado, concluindo o sistema antes disso pela sua inocência”.
Na opinião do advogado popular, a construção de uma sala de espera na Central de Custódia é mais barata do que o orçamento destinado a contratar “figurões do Carnaval”. Ele finaliza: “As festas juninas já se aproximam com anúncios de custos em apresentações desse tipo muito mais vultosas. Portanto, o argumento de falta de orçamento não cabe no Maranhão. É preciso inverter prioridades”.

DOCUMENTOS RELEVANTES NA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA
Se você tem um familiar preso em flagrante que ará por audiência de custódia, alguns documentos podem fazer diferença significativa na decisão do juiz sobre manter a prisão ou conceder liberdade provisória:
O que levar
- Documento de identidade do preso (RG, CNH ou equivalente)
- Comprovante de residência fixo e recente (conta de água, luz ou internet)
- Comprovante de trabalho (carteira assinada, contrato ou declaração do empregador)
- Certidão de nascimento dos filhos (se tiver dependentes)
- Documentos médicos (receitas, atestados ou relatórios de tratamentos em andamento)
- Comprovante de matrícula em escola ou curso
Como proceder
Entregue esses documentos ao defensor público ou advogado antes da audiência de custódia.
Por que isso ajuda
Esses documentos demonstram vínculos familiares, residência fixa e ocupação lícita — fatores que o juiz considera ao decidir se a pessoa pode responder ao processo em liberdade. Comprovantes de residência e trabalho são especialmente importantes, pois indicam baixo risco de fuga ou de prejuízo à aplicação da lei penal. O prazo é curto: a audiência de custódia deve ocorrer em até 24 horas após a prisão em flagrante. Reúna os documentos o mais rápido possível.
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