Cisterna de concreto com tampa aberta, mostrando seu interior com água suja. Uma mangueira está conectada à cisterna.

No Maranhão, quase 100 mil estudantes não têm água potável na escola

Dados do Censo Escolar 2023 mostram que problema afeta mais de mil escolas, principalmente na rede pública municipal

“Nós levamos água de casa em garrafas porque a da escola está imprópria para consumo.” O relato é de uma estudante do Centro de Ensino Professor Machadinho, em Paço do Lumiar, na Região Metropolitana de São Luís. “A situação é insustentável. Alguns colegas aram mal depois de beber essa água”, conta outro estudante da mesma escola.

No final de fevereiro, alunos da unidade denunciaram a qualidade da água fornecida na escola. Segundo vídeo publicado no perfil M1 Maiobão, no Instagram, que divulgou o caso, a caixa d’água da escola está sem tampa, o que estaria deixando a água dos bebedouros com aspecto esverdeado.

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Em todo o Maranhão, cerca de outros 100 mil estudantes enfrentam o mesmo problema de falta de água potável nas escolas.

É o que apontam dados do Censo Escolar da Educação Básica de 2023, realizado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), autarquia federal vinculada ao MEC (Ministério da Educação).

O levantamento mostra que, naquele ano, 97.039 alunos estavam matriculados em instituições que não garantem o à água própria para consumo.

A maioria das escolas afetadas pertence à rede pública municipal de ensino, seguida pela redes pública estadual e privada. As instituições federais de ensino não apresentaram o problema. De acordo com os dados de 2023, exatas 1.086 escolas no estado não forneciam água potável para os estudantes, sendo 846 de responsabilidade das prefeituras.

O Atual7 analisou os dados dos últimos cinco anos disponibilizados pelo Inep. O resultado do levantamento de 2024 ainda não foi divulgado pelo órgão.

Entre 2019 e 2023, Monção, localizado a cerca de 160 km de São Luís, na região Centro-Leste do Maranhão, aparece no topo como o município com o maior número de escolas sem fornecimento de água potável. O último levantamento divulgado aponta que, embora tenha conseguido reduzir a quantidade de escolas sem água potável, os dados mais recentes mostram que em pelo menos 63 unidades da rede pública do município ainda não há esse abastecimento. Nestas escolas, 3.814 estudantes enfrentaram essa condição.

Considerando apenas 2023, o município de Pinheiro, na Baixada Maranhense, a 333 km da capital, é o segundo no ranking de escolas públicas no estado que não contam com fornecimento de água tratada, com 61 unidades. Destas, 60 pertencem à rede municipal e apenas uma à rede estadual. Foram registradas 5.076 matrículas de alunos em escolas nessas condições.

Barra do Corda, situada na Região Central do estado, a 444 km de São Luís, ocupa a terceira posição no pódio, com 60 escolas sem o à água potável, sendo 50 da rede estadual e 10 da rede municipal. Em 2023, 3.888 alunos estavam matriculados nessas unidades.

Considerado o número de matrículas, incluindo na rede privada de ensino, a capital maranhense ocupa a vice liderança da lista de cidades com maior número de matrículas em instituições sem o fornecimento de água potável, com 4.001 estudantes sob essa situação crítica, perdendo apenas para Pinheiro.

Água potável nas escolas

De acordo com as orientações do Inep para preenchimento dos formulários referentes ao Censo Escolar, água potável significa aquela destinada à ingestão, à preparação e à produção de alimentos que não ofereça riscos à saúde. Para isso, é preciso que a água atenda ao padrão de potabilidade estabelecido pela Portaria nº 2.914, de 12 de dezembro de 2011, do Ministério da Saúde.

O estudo do Inep diferencia fornecimento, que quer dizer que a água disponibilizada nas escolas, na data da pesquisa, era tratada e segura para o consumo dos alunos, de abastecimento, que diz respeito à distribuição da água para a escola, que pode ser potável ou não, dependendo da fonte. Dessa forma, uma escola pode ter abastecimento de água, mas isso não garante que a água fornecida é potável, ou ainda, que na data do levantamento, simplesmente não tinha água na instituição.

Das 1.086 escolas no estado que afirmaram não ter fornecimento de água potável na data do último Censo Escolar, 248 alegaram ter abastecimento da rede pública, 347 de poço artesiano (perfuração profunda para captação de água subterrânea), 145 de água de cacimba (água armazenada em poços rasos, geralmente feitos manualmente, que captam água da chuva ou de lençóis freáticos superficiais), 76 de água proveniente de fonte de rio e 313 declararam não ter nenhum abastecimento de água.

Para Luana Pretto, presidente executiva do Instituto Trata Brasil, organização não governamental dedicada à melhoria do o da população brasileira à água tratada e ao saneamento básico, a diferença entre o o à água potável e o uso de outras fontes, como o poço artesiano, reside nos parâmetros estabelecidos pelo Ministério da Saúde. “É uma água que tem a garantia de que não vai gerar nenhuma doença na população. Quando a gente utiliza uma água de poço artesiano que não a por todos os padrões de teste que a água potável a, esse poço artesiano pode ter coliformes fecais, isso pode gerar uma série de doenças na sociedade”, esclarece.

Pretto explica a importância da água potável nas escolas: “As crianças estão em um período de desenvolvimento físico, intelectual, neurológico, quando elas tomam uma água que está contaminada, essas crianças vão ter uma série de doenças de veiculação hídrica, principalmente as diarreias. Isso faz com que haja um prejuízo no desenvolvimento e uma maior dificuldade de aprendizagem nas escolas”.

Jhonatan Almada, diretor do CIEPP (Centro de Inovação para a Excelência das Políticas Públicas), membro da Rede de Especialistas em Políticas Educativas da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)/IIPE (Instituto Internacional de Planejamento Educacional) e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, explica que o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para Infância) acompanha há muitos anos os problemas que afetam as crianças, e diz que um dos elementos básicos para a saúde é o o à água potável.

“Se com fome não se aprende, menos ainda com sede. Sabemos que a higiene das mãos é fundamental para evitar a contaminação por bactérias e outros vetores de doenças. Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) trata da educação e, entre os indicadores que utiliza, está o WASH [sigla em inglês para água, saneamento e higiene]. Embora os relatórios mostrem que o Brasil não tem percentuais elevados de carência nesses indicadores, sabemos que o país é extremamente desigual”, expõe.

Segundo ele, a situação pode ser ainda mais delicada, pois algumas escolas sem o à água, saneamento e higiene não seriam contabilizadas nos estudos sobre o tema. “Um dos agravantes é que os anexos escolares são invisíveis nesses levantamentos, o que significa que a situação pode ser ainda mais grave. Claramente, essa realidade afeta a concentração e a saúde dos estudantes – não se aprende sob privações”, alerta.

Para Almada, o problema da falta de saneamento básico no Maranhão persiste porque na área da educação há uma política de fazer tudo ao mesmo tempo e em todo lugar. Ou seja, o poder público não teria a definição de prioridades. “Chegamos ao último ano do Plano Estadual de Educação sem cumprir a maioria expressiva das metas estabelecidas – o mesmo ocorreu no Brasil com o Plano Nacional de Educação. É necessário fazer planejamento educacional, definir qual o padrão mínimo aceitável para as escolas e investir para que todas cheguem lá em um prazo razoável. O que temos assistido é a aplicação de remendos em panos velhos, o que resulta em reformas e ampliações mal feitas nas escolas existentes”, esclarece.

Uma situação que evidencia a gravidade do problema citado por Almada ocorreu no Anexo da UEB Lindalva Teotônia, no Anjo da Guarda, bairro da região do Itaqui-Bacanga, uma das mais populosas da capital. Em março de 2024, a escola foi inspecionada pelo Mobiliza Sindeducação (Sindicato dos Profissionais do Magistério da Rede Pública Municipal de São Luís). Na ocasião, constatou-se que, devido à falta de água na unidade, as mães enviavam as crianças com garrafas trazidas de casa. Em alguns dias, os alunos chegavam a ser liberados mais cedo por conta do calor e da ausência de abastecimento.

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Quase um ano após a filmagem realizada no Anexo da UEB Lindalva Teotônia, o Sindeducação confirmou, por meio de uma fonte da escola que prefere não se identificar, que o problema da falta de água na unidade permanece.

Para Almada, a educação pública brasileira expandiu o o sob o marco da precarização e da diferenciação. Segundo ele, precarização porque as condições básicas de infraestrutura das escolas nunca foram plenamente resolvidas. Diferenciação porque, em paralelo a essa rede fragilizada, foram incluídas escolas de referência, como as escolas técnicas ou as escolas de tempo integral. “Sem resolver o problema das escolas precarizadas, criamos uma rede paralela para poucos. Ainda não definimos, como país, um padrão mínimo de qualidade para garantir que todas as escolas ofereçam o básico”.

O Atual7 questionou as gestões municipais de Monção, Pinheiro, Barra do Corda e São Luís sobre quais medidas têm sido adotadas para solucionar o problema e se há ações concretas para diminuir o número de escolas sem fornecimento de água potável. Apenas Monção e São Luís responderam.

O que dizem as autoridades

A secretária de Educação de Monção, Edivana Mendonça, minimizou a situação e desqualificou os dados sobre a ausência de fornecimento de água potável na rede pública de ensino do município. “As informações provenientes do Censo Escolar, apesar de relevantes, são dados estatísticos que podem não refletir a realidade fática de forma precisa. O contexto local muitas vezes envolve variáveis que não são captadas integralmente em levantamentos dessa natureza”, declarou.

Ainda segundo alegou, o município estaria enfrentando limitações orçamentárias, o que, de acordo com ela, impactaria na implementação de soluções em infraestrutura escolar. “Ainda assim, dentro das possibilidades financeiras e com muito empenho, temos buscado assegurar o fornecimento de água potável às escolas municipais. Conforme os dados da Secretaria de Educação, o município possui 84 escolas, sendo que 26 contam com poços artesianos implantados com recursos do PDDE Água, 45 são atendidas por poços artesianos comunitários, 12 utilizam água fornecida pela Caema para limpeza e contam com água mineral adquirida para consumo, e 1 escola possui poço artesiano mantido com recursos próprios”.

O PDDE, citado por Mendonça, é o Programa Dinheiro Direto na Escola, do Governo Federal, que destina recursos financeiros de custeio e de capital às educação básica do campo, indígenas e quilombolas, localizadas na zona rural, para garantir o abastecimento de água em condições apropriadas ao consumo e o esgotamento sanitário nas unidades escolares beneficiadas, que tenham declarado no Censo a inexistência de abastecimento de água ou de esgotamento sanitário.

Já a Prefeitura de São Luís, responsável por quatro escolas da capital sem fornecimento de água potável em 2023, não respondeu diretamente sobre a falta de o à água tratada nessas unidades e limitou-se a falar sobre o abastecimento nas escolas. A pasta afirmou que os dados do Inep estariam desatualizados. “A Secretaria Municipal de Educação informa que todas as escolas mencionadas possuem abastecimento regular de água potável e esclarece que já atualizou as informações referentes a essas unidades de ensino junto ao Censo Escolar de 2024, corrigindo dados de 2023”, disse.

O Censo Escolar com os dados do ano ado tinha previsão para ser disponibilizado em 31 de janeiro. Contudo, ainda houve a divulgação pelo MEC, o que impede a verificação da informação fornecida pela Semed.

O Governo do Maranhão foi questionado sobre as escolas sem fornecimento de água potável no estado e também sobre a situação do C.E. Professor Machadinho, mas não se pronunciou.

A reportagem também ouviu órgãos de investigação e controle sobre a falta de o à água potável nas escolas maranhenses.

O promotor de justiça Lindonjonson Gonçalves de Sousa, titular da 2ª Promotoria de Justiça de Defesa da Educação de São Luís do Ministério Público do Maranhão, aponta que o problema do o à água nas escolas da capital está diretamente relacionado às condições gerais de saneamento básico da cidade. “Quanto a água nas escolas, seja para uso sanitário ou consumo humano, temos casos de precariedades em unidades que funcionam em prédios alugados ou cedidos (associação de moradores)”, afirma.

Em 2023, o TCE (Tribunal de Contas do Estado) do Maranhão realizou a Operação Educação, auditoria que verificou as condições de funcionamento escolas públicas municipais e estaduais em 31 municípios. As unidades de ensino foram escolhidas a partir de indicativos de situações críticas relacionadas à infraestrutura apontadas no Censo Escolar do ano anterior.

Ao Atual7, auditora de controle externo Helvilane Araujo disse que, das quase 99 escolas visitadas pelos integrantes da corte, a auditoria constatou que em 83 delas havia água disponível, enquanto em 16, não. O levantamento também apurou inadequações nos bebedouros. Apenas em uma escola o bebedouro não tinha água. “O abastecimento de água na maioria das escolas é feito pela Rede Pública (70 escolas). Algumas tem poço e rede pública. No entanto, oito escolas ainda usam cacimba ou cisterna para o abastecimento de água. No dia da visita, não tinha água em 18 escolas, informa.”

Dos três municípios citados na reportagem por figurarem no topo do ranking da lista de municípios com maior número de escolas sem o fornecimento de água potável, os auditores do TCE-MA visitaram apenas dois: Barra do Corda e Pinheiro. “Em Barra do Corda de três escolas visitadas, duas informaram não ter água potável disponível, uma escola informou que a água é retirada direto do rio e a outra informou que o resultado da análise da água foi imprópria para consumo. Em Pinheiro, de três escolas visitadas, uma informou não ter água potável em razão da falta de água na escola ser constante”, disse.

Segundo o MEC, os dados do Censo Escolar têm caráter declaratório, ou seja, dependem das informações prestadas pelas próprias escolas e redes de ensino. Principal ferramenta de monitoramento da educação básica no Brasil, a pesquisa é anual e obrigatória. Os dados coletados servem de base para o ree de recursos do governo federal e planejamento e divulgação de dados das avaliações realizadas pelo Inep.

Metodologia

O Atual7 realizou o da base de dados do Censo Escolar no site do Inep, do MEC. Os anos baixados foram 2019, 2020, 2021, 2022 e 2023. Um filtro foi aplicado para análise apenas nos dados do Maranhão e em escolas que estavam funcionado em cada ano do levantamento.

Com esses dados, um novo filtro foi aplicado para análise apenas em escolas que não forneciam água portável no período. Todas as dependências istrativas (federal, estadual, municipal e privada) dos 217 municípios do Maranhão foram observadas. Como referência para definir água potável, a reportagem utilizou a Portaria nº 2.914/2011, do Ministério da Saúde.


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